As regras... e as pessoas
Quando entrei para um organismo da administração pública, há quase 20 anos, uma das primeiras coisas que me explicaram foi o regulamento, ou seja as regras do jogo: os horários, o que se pode ou não fazer, como se justificam ausências, etc.
Na altura pensei logo em ter cuidado para não ser apanhado a infringir nada. Com o tempo, apercebi-me que algumas coisas não eram levadas de forma absolutamente rigorosa por todos os colegas, mas não vi grandes abusos.
Estranhei quando reparei que, de vez em quando, o meu director, se via alguém mal disposto, chegava junto da pessoa em causa e lhe dizia algo do estilo - "você hoje não está bem. Vá para casa e volte amanhã, se estiver melhor".
Quando precisava de um esforço suplementar de alguém, que implicasse sair para além das horas normais de serviço, o mesmo director vinha ter com as pessoas em causa e solicitava esse esforço, obtendo normalmente resposta positiva.
Com o tempo, fui percebendo que o mesmo director, se via alguém a "fazer ronha" caía-lhe em cima de forma implacável.
Lembrei-me disto a propósito de uma nota que, por indicação da administração do organismo onde trabalho, foi enviada a todos os colaboradores. Basicamente, a nota destinava-se a esclarecer "todos os colaboradores, que o gozo de “horas a mais”, só se poderá efectivar, quando as mesmas tenham sido feitas de facto por motivos de serviço, e não por gestão do tempo por interesse meramente pessoal. Para correcta responsabilização do serviço, o pedido de gozo de “horas a mais” tem de ter a autorização prévia do superior hierárquico, e não apenas posteriormente como uma normal justificação de falta."
Perante esta nota, enviei imediatamente um pedido de esclarecimento ao Núcleo de Recursos Humanos, dizendo que, "por razões de serviço tenho frequentemente horas a mais e, sempre que necessário e com a autorização do superior hierárquico, falto apresentando posteriormente a justificação. Nunca me ocorreria faltar sem avisar previamente a chefia e ter a sua necessária concordância, visto que é da sua competência decidir se essa falta é possível, mediante as necessidades do serviço (e, sempre que entender nesse sentido, deverá informar o funcionário de que não será possível faltar nessa altura)."
A colega ligou-me dizendo para fazer o que sempre tinha feito.
Eu acho que os regulamentos são para cumprir. Mais, muitas vezes, quando se fecha os olhos em algumas situações insignificantes, há sempre uns xicos espertos que resolvem logo abusar, estragando tudo (a eles e aos colegas). Defendo ainda que as administrações devem agir, principalmente se não confiarem nas chefias intermédias ou acharem que há abusos. No entanto, para mim, os regulamentos não são tudo.
Se um funcionário entrar à hora certa e sair sempre à hora certa, está a cumprir os regulementos. Há muitos assim: quando toca o minuto estão já de cartão na mão para "picar o ponto". Nunca fica um minutinho para o mês seguinte e, se ficar, é utilizado até ao limite, mesmo que não precise. Se precisar de faltar para tratar de algum assunto, há mecanismos previstos na lei. No entanto, se houver uma necessidade imprevista e já não houver cobertura legal, com que lata é que pode pedir algum favor ao chefe? Quem não está na disposição de dar nada, também não tem moral, na minha opinião, para pedir nada.
A mesma situação pode ser vista de um outro ângulo: o regulamento diz que só se pode fazer horas a mais por interesse do serviço. Está certo. No entanto, há quem sempre tenha muito trabalho que fica por fazer ao sair para casa e quem, por especificidades da sua função nunca tenha a possibilidade de fazer horas de serviço a mais para posteriormente poder utilizar em caso de necessidade pessoal. Azar o seu: não pode nunca tirar uma tarde por conta de horas a mais. Se, por acaso houver uma necessidade especial de acabar algum trabalho com esforço suplementar, poder-se-á admitir que a mesma administração venha pedir a estas pessoas que façam o favor de trabalhar algumas horas a mais? Haverá também moral para isso? Se não se está na disposição de dar nada, haverá também aqui moral para pedir?
A verdade é que esta questão se calhar não se coloca na prática: na minha experiência profissional, sempre que se fazem horas a mais no meu serviço, a questão é tratada ao nível local e por espírito de camaradagem; é para ajudar colegas que estão em dificuldades e a administração provavelmente nem sequer fica a saber que isto se passou.
É claro que sempre houve a situação dos que fazem horas extraordinárias pagas, (com produtividades às vezes miseráveis nos horários normais) e os outros que fazem inúmeras horas não pagas cujo esforço nunca será reconhecido. É e será sempre assim mas não é isso que está aqui em causa.
Na minha humilde opinião, independentemente da situação em que nos encontremos, simples colaborador ou gestor, deveremos sempre estar disponíveis para dar algo, antes de pensarmos em pedir. Mais do que cumprir excrupulosamente as regras, tata-se de lidar com pessoas, que se supõe responsáveis. Se há abusos, que se trate dessas situações.
Isto ganha uma outra dimensão quando, nos mesmos organismos, existem situações de pessoas que fazem os horários que querem, que vão quando vão, semana após semana, mês após mês, ano após ano, (e as administrações sabem), e nada acontece. Onde estão os regulamentos nesses casos?
Já agora, a respeito de horários laborais, lembrei-me desta citação relativa aos direitos dos trabalhadores, retirada da Encíclica Centesimus Annus, escrita pelo papa João Paulo II em 1991 para comemorar os 100 anos da Rerum Novarum de Leão XIII: "é necessário garantir o respeito de horários «humanos» de trabalho e de repouso, bem como o direito de exprimir a sua personalidade no lugar de trabalho, sem serem violadas seja de que modo for a consciência ou a dignidade."
Como seria bom, se assim fosse.
António Neves
domingo, setembro 24, 2006
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