sábado, setembro 23, 2006

A Doutrina Social da Igreja

Celebraram-se recentemente (em 14 de Setembro) 25 anos sobre a publicação da Encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, a qual marca uma mudança clara na Doutrina Social da Igreja (pela primeira vez um papa admite que a confrontação de classes possa ser necessária).

A Laborem Exercens deveria ter sido publicada a 15 de Maio de 1981 para comemorar o 90 aniversário da Rerum Novarum, mas o atentado que sofreu João Paulo II levou a que só pudesse rever o texto após sair do Hospital, pelo que o documento só surgiu a 14 de Setembro.

De todos os (muitos) documentos publicados pela Igreja sobre a Doutrina Social da Igreja, este será, talvez, um dos que mais priveligiam as questões relacionadas com o trabalho, visto dedicar-se especificamente a esse tema.

A passagem desta efeméride fez-me repensar de novo uma questão que tenho alguma dificuldade em compreender: o desconhecimento que a sociedade em geral e os cristãos em particular têm sobre a Doutrina Social da Igreja (DSI). De facto, se as posições oficiais da Igreja sobre o aborto, a reprodução medicamente assistida, ou sobre a contracepção são, de alguma forma globalmente conhecidas (ou, pelo menos assim parece), é raro encontrar quem, fora da hierarquia da Igreja, conheça, mesmo que de forma mais superficial, a DSI.

E, no entanto, não se trata de um tema novo, ou sobre o qual rareie documentação. Muito pelo contrário.

Como disse João Paulo II, "A doutrina social da Igreja tem, efectivamente, a sua fonte na Sagrada Escritura, a começar pelo Livro do Génesis, e, em particular, no Evangelho e nos escritos dos tempos apostólicos. A atenção aos problemas sociais faz parte, desde o início, do ensino da Igreja, da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Este património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontífices sobre a moderna «questão social», a partir da Encíclica Rerum Novarum" (Laborem Exercens, n.3).

Na verdade, esta área da doutrina da Igreja é uma questão essencialmente evangélica; entra na dimensão do amor ao próximo. Desde sempre estas questões estiveram na linha da frente das preocupações de muitos cristãos, concretizando-se em diversas circunstâncias, e no decurso da História, em acções concretas. Lembro a criação de inúmeras estruturas de carácter social, como os Centros Sociais, e inúmeras IPSS. Entre estas, saliento as Misericórdias, de tradição tipicamente portuguesa, que hoje são cerca de 400 (entre as quais, a bem do rigor, se não deve incluir a mais conhecida, pois a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, não é uma IPSS, mas uma instituição pública tutelada pelo Ministério do Trabalho e da Soldariedade, não fazendo, portanto, parte da União das Misericórdias Portuguesas).

Tendo em conta que a DSI é um património elaborado segundo as necessidades das diversas épocas (cf. Laborem Exercens, n.3), considera-se que o primeiro grande documento de carácter doutrinário sobre a DSI é a Encíclica Rerum Novarum, datada de 15 de Maio de 1891 e que teve como autor o papa Leão XIII.

A Rerum Novarum foi de tal modo marcante para a Igreja do último século que, periodicamente, esteve na origem de muitos documentos papais, publicados em sua comemoração, sendo que o nome de alguns é apenas a referência à própria efeméride:

Assim, vejamos:

* No quadragésimo ano da sua publicação: Encíclica Quadragesimo Anno - 15 de Maio de 1931 - de Pio XI;
* No quinquagésimo ano a mensagem pela rádio La Sollenità della Pentecoste - 1 de Junho de 1941 - Pio XII;
* No septuagésimo ano: Encíclica Mater et Magistra - 15 de Maio de 1961 - João XXIII;
* No octogésimo ano:Carta Apostólica Octogesima Adveniens - 14 de Maio de 1971 - Paulo VI;
* No nonagésimo ano: a, já referida, Encíclica Laborem Exercens - 14 de Setembro de 1981 - João Paulo II;
* No centésimo ano: a Encíclica Centesimus Annus - 1 de Maio de 1991 - João Paulo II;

Há muitos outros documentos relevantes para a DSI publicados no século XX, do qual me parece merecer referência especial a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Concílio Vaticano II), de 7 de Dezembro de 1965.

A criação de vasta documentação sobre este tema justifica-se claramente, pois "A Igreja considera seu dever pronunciar-se a respeito do trabalho, do ponto de vista do seu valor humano e da ordem moral em que ele está abrangido" (Laborem Exercens, n.24)

As transformações económicas e políticas do Séc. XIX resultantes da industrialização foram acompanhadas por graves questões sociais totalmente diferentes das que se conheciam da sociedade pré-industrial. Estas questões estiveram na origem de dois tipos de reflexão de estilo diferente: uma, de carácter ideológico, rapidamente se afirmou por suportar um sistema de pensamento de cariz nitidamente político: o materialismo dialéctico, base filosófica do marxismo; outra, de carácter diverso, assente no humanismo cristão, a DSI.

Assim, enquanto a experiência vivida por Marx, em Paris e principalmente junto da comunidade operária em Londres se não pode dissociar da publicação, em 1848,do Manifesto do Partido Comunista, também é impossível não perceber que, na origem da Rerum Novarum está uma profunda reflexão sobre a nova realidade social onde o movimento operário era já uma realidade visível por parte de Leão XIII (na Europa, mas particularmente na Itália recentemente unificada) e, também, uma reacção e condenação do Socialismo (como então era chamado), contrapondo-lhe a defesa dos trabalhadores de uma forma diferente. Aliás, a Igreja nunca deixou de estar atenta à realidade social/económica/política emergente: por exemplo, no mesmo ano em que Marx fundava a primeira Internacional (1864), o Bispo de Mainz publicava um livro intitulado A Questão Operária e o Cristianismo.

A Rerum Novarum, embora hoje muito ultrapassada em diversos aspectos, foi uma verdadeira "pedrada no charco", um marco histórico, que não passou despercebido, gerando reacções, por vezes violentas. Em Portugal, o primeiro comentário público terá sido a obra A Igreja e a questão social, de Afonso Costa, publicada em 1895, em que este critica duramente a encílica, como seria de esperar.

Contrariamente ao marxismo, a DSI não é uma ideologia ou sistema de pensamento que suporte qualquer tipo de projecto político, mas antes "a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial" (Sollicitudo Rei Socialis, n. 41), ou, dito de outra forma, a "aplicação da Palavra de Deus à vida dos homens e da sociedade, assim como às realidades terrenas que com elas se relacionam, oferecendo «princípios de reflexão», «critérios para julgar» e «directrizes de acção» (idem, n.8).

Como disse João XXIII na Mater et Magistra, a pedagogia adequada da DSI é "Ver, Julgar e Agir", à luz do Evangelho.

Basicamente, pode caracterizar-se por alguns princípios fundamentais que resumo:

1 - A Dignidade da Pessoa Humana

"Cada um dos seres humanos é e deve ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social" (Mater et Magistra, n. 219). Daqui decorre o que, por vezes é conhecido pelo princípio da universalidade, pois o ser humano concretiza-se na história, num espaço e tempo.

2 - O Bem Comum

"o Bem Comum compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem o desenvolvimento integral da personalidade" (idem, n. 65);

3 - A Solidariedade

"O dever de solidariedade é o mesmo, tanto para as pessoas, como para os povos" (Populorum Progressio, n. 48);

4 - A Subsidiariedade

Tem a ver com a responsabilização. Aquilo que alguma pessoa ou instituição pode fazer, não deve ser delegado noutra pessoa ou instância superior (cf. Quadragesimo Anno, 79-80);

Relativamente a esta assunto, tão desconhecido, lembro que, no final de 2004 foi apresentado o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho «Justiça e Paz», por vontade do Santo Padre João Paulo II.

Além das imensas pessoas e instituições que são instrumentos concretos da DSI no terreno, existem diversas organizações que se dedicam à sua divulgação. Na Diocese de Lisboa, tem talvez maior relevância o Centro de Divulgação da Doutrina Social da Igreja (CEDSI) que realiza regularmente iniciativas de divulgação da DSI, nomedamente na Vigararia da Amadora.

Em Novembro de 2004, mais-ou-menos na altura em que foi apresentado o Compêndio, fiz uma pequena pesquisa sobre o assunto na Internet, a propósito de uma conferência que proferi sobre este assunto, precisamente organizada pelo CEDSI. Fiquei surpreso por constar que eram ainda raros os sites associados à Igreja que davam notícia do documento, mas, curiosamente, o mesmo era referido no "Portal do Ateísmo" (www.ateus.net/ ), com uma informação simples e objectiva, explicando o objectivo da publicação.

É fundamental que os cristãos, independentemente dos contextos sociais/culturais/laborais em que se inserem, conheçam a DSI, pois o seu âmbito de aplicação abrange grande parte das realidades com que se deparam e dos problemas que se lhes colocam no dia-a-dia.

Isto tem um significado particular na realidade laboral, porque, "o homem, ao fazer o trabalho, deve imitar Deus, seu Criador, porque ele somente traz em si este singular elemento de semelhança com o Senhor" (Laborem Exercens, n.25).

António Neves

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