domingo, outubro 01, 2006

Princípio da imparcialidade

Leio no Expresso desta semana (30 de Setembro), a seguinte notícia:

Tribunal anula concurso de Portas
O Concurso, de 75 milhões, lançado pelo ex-ministro da Defesa, Paulo Portas, para adquirir cerca de 40 mil armas para o exército, foi anulado pelo tribunal por violação do "princípio de imparcialidade". A acção foi interposta por um dos concorrentes.

A notícia está mais desenvolvida e pode ser vista na edição online do Expresso.

Hum ....!Interessante ... esta do princípio da imparcialidade. Onde é que eu já ouvi isto?

Sendo a acção interposta por um dos concorrentes prejudicados, há logo quem venha clamar: É inveja; é inveja porque não ganharam.

Mas, a luta pela igualdade de oportunidades e imparcialidade não é um direito?
Isto dos tribunais ainda serem independentes ... Se funciona em coisas de milhões com ministros, talvez funcione em coisas mais pequenas, em organismos mais pequenos.

Talvez ...

O Parasita

sexta-feira, setembro 29, 2006

Não queremos fazer gente capada

Foto de D. Carlos Azevedo retirada da notícia do www.correiodamanha.ptGosto particularmente de D. Carlos Azevedo.

Não o conheço na intimidade, nem me sinto capacitado para confirmar a sua fama de excelente teólogo, mas é um homem de olhar franco e palavras claras, um daqueles típicos homens do norte.


Tive já oportunidade de lidar com ele de perto numa situação particularmente delicada; ele na sua missão de Bispo Auxiliar de Lisboa (responsável pela área das Vigararias do Termo Ocidental: Amadora, Cascais, Oeiras e Sintra) e eu, enquanto membro do Secretariado Permanente do Conselho Pastoral da minha paróquia.

Vem agora isto a propósito de declarações suas recentes sobre a polémica provocada pelas palavras do Papa na Universidade de Ratisbona, na Alemanha.
Segundo D. Carlos : “Acho que as pessoas são naturalmente violentas, quer sejam religiosas ou não religiosas. A agressividade e a sexualidade são as duas grandes energias do ser humano e existem em toda a gente; não queremos com a religião fazer gente capada e anestesiada.” E explicou também que as verdades não podem deixar de ser ditas, por muito duras que sejam as palavras e que, naturalmente, esta declaração tem de ser contextualizada, “sob pena de acontecer o que aconteceu ao Santo Padre com a citação do imperador Manuel II”.

“O homem possui naturalmente as energias da violência e da sexualidade, e Deus, que é um factor de harmonia, faz convergir essas energias para o bem”, disse D. Carlos Azevedo, sublinhando que “as energias não são boas nem más, podem é ser bem ou mal conduzidas”.

Independentemente de achar talvez pouco prudente a forma como o papa Bento XVI abordou a questão, embora num contexto muito específico e sem a intenção que os radicais pretendem fazer crer, não podemos pensar que resolvemos todos os problemas com paninhos quentes, só porque, perante qualquer pretexto, lá podem vir uns suicidas ou umas bombas (e perante isso não se questionam as bombas, mas as palavras, mesmo que descontextualizadas).

Não vou reproduzir agora todo o seu discurso sobre o tema, mas concordo absolutamente com a ideia de que “Nós não podemos ter receio de dizer que é mau espalhar a fé com a espada, até porque sabemos muito bem do que estamos a falar. A Igreja Católica também já cometeu esse erro, mas corrigiu-se, arrepiou caminho e até já pediu perdão [João Paulo II] pelos excessos cometidos na Idade Média e na Inquisição”, sublinhou o prelado.

Enquanto católico, não me sinto orgulhoso de muita coisa que os católicos fizeram ao longo de 2000 anos, principalmente, quando o faziam "em nome de Deus". Os facto de outros também o terem feito (porventura com menos publicidade) não diminui em nada a gravidade dos nossos "pecados". Sinto-me, no entanto que estamos no bom caminho se tivermos aprendido alguma coisa com a história, percebido os nossos desvios e que, acima de tudo, tenhamos pedido perdão por isso, como o fez de forma clara e formal João Paulo II. A propósito: que outros líderes religiosos já tiveram a humildade de o fazer?

António Neves

terça-feira, setembro 26, 2006

EUREKA

Duas pequenas notícias da última página da edição nº 2 do Confidencial (separata do SOL), do passado dia 23 de Setembro chegam para desmistificar a questão da reforma da Administração Pública e da forma como se resolvem os problemas no Portugal democrático.

Ei-las:

Gestores municipais com salários 'ilegais'
A Inspecção-Geral de Finanças (IGF) detectou o pagamento de salários de gestores municipais acima do permitido por lei. A auditoria realizada pela IGF, noticiada esta semana pelo Jornal de Negócios, detectou ainda o recurso abundante a pagamentos acessórios e a tomada de decisões pelos gestores sobre os seus próprios salários.


Isto já todos sabíamos, mas pronto; descobriram agora...

Admissões justificam gastos
A PRINCIPAL causa do agravamento dos gastos com os funcionários públicos está na admissão de pessoal e não no que custa cada trabalhador aos cofres do Estado.
Esta é uma das conclusões a que chegou a Comissão de Revisão do Sistema de Carreiras e Remunerações, cujos resultados serão conhecidos em breve, quando o Governo apresentar as opções tomadas. (...)
Esta semana o secretário de Estado da Administração Pública, João Figueiredo, reiterou o compromisso de redução de 75 mil funcionários nesta legislatura. O responsável disse que Portugal tem um número de funcionários públicos semelhante ao dos restantes países europeus mas adiantou que a factura com o pessoal fica muito acima.


Ok, após o imenso esforço desta douta comissão (em que todos são voluntários ou recebem o ordenado mínimo) já se percebeu o resto da história. Os nossos ilustres já decidiram: gasta-se muito? Então com quantos desgraçados temos que correr para manter as mordomias da malta?

Ele há coincidências... eu a acabar de escrever isto e ouço no Telejornal que o primeiro -ministro japonês vai baixar o seu próprio ordenado em 30% e o dos restantes ministros em 10%. Será que aqueles desgraçados não evoluem?

O parasita
Serão voluntários?

No DiarioEconomico.com de há uns dias, estava uma interessante notícia com o título:
Estado desconhece salário de 27 mil funcionários.
De acordo com a notícia, há precisamente 26.897 casos remuneratórios “desconhecidos por ausência de informação por parte dos organismos”.

Já dá que pensar ... mas , ninguém sabe mesmo?
De onde vem o dinheiro? Não há recibos? É saco azul? São clandestinos?

Entretanto, meio abalado, passei uma vista de olhos pelos comentários enviados por diversas pessoas e fixei-me em dois, que irei reproduzir, visto serem públicos:

"Há funcionários publicos a mais neste país.E chamar-lhes funcionarios publicos, chega até a ser um insulto, pois mais não são do que uma "cambada" de chulos da sociedade portuguesa, que vivem à conta de estratagemas para não fazer nenhum e da corrupção, que lhes permite estilos de vida, muito superiores ao que ganham...Com 300 mil funcionarios publicos, seria suficiente...se é em países mais ricos e com mais população do que Portugal, deveria ser suficiente aqui...despeçam mas é essa cambada de chulos!!!!"

Até aqui, nada de novo: temos que acabar com aquela corja.

"a imprensa só fala de ordenados altissimos, não fala da arraia miúda como eu que estou a trabalhar na secretaria de uma Junta de Freguesia á 20 anos, fiquei no quadro há 4 anos porque entrou um Presidente de Junta bom, porque o outro que cá esteve como era rico e presunçoso e tinha a mania que era mais que os outros sempre me quis lixar a vida, nunca me pôs nos quadros e assim estou a trabalhar para o povo á 20 anos como auxiliar administrativa no indice 100 escalão 128 com um ordenado base de 412.00 € limpos fico com um ordenado de 367.00 fiz agora quatro anos no quadro e o governo fechou subidas de escalão, para não ganharmos mais 15.00 €, eu na Junta de Freguesia faço de tudo, transporto crianças,começando logo ás 8.30 h ajudo a dar refeições ás crianças da Pré escola e Primária na minha hora de almoçoe tenho ainda todo o trabalho de secretaria, actas e contabelidade da Junta, saio por volta das 18.00 e quando não é mais tarde, para que para ajudar o estado? não me pagam horas. desculpem o desabafo, mas trabalhamos nós arraia miúda para outros com ordenados altissimos não fazerem nada e passearem ainda á conta de nós que trabalhamos, julgo que não sereia a única, mas o governo deveria sim congelar a subida de escalões e de ordenados de pessoas com ordenados altos não de pessoas como eu que tem um ordenado que não dá este mês para comprar o material escolar para a minha filha."

Confesso que tive alguma dificuldade em integrar esta senhora naquala "cambada" de chulos.

Pois é, pois é. As generalizações são o que são.
Pelos vistos esta senhora também não é uma daquelas 15 figuras da EPUL com alto salário e emprego vitalício. Azar.

E será que os ordenados que se "desconhecem" são iguais aos de esta senhora e de muitas que conheço em circunstâncias semelhantes? Tá-se mesmo a ver.

Já agora, será que o quadro que reproduzo (recebi-o por mail e não verifiquei com rigor a origem), reflecte a realidade?

PESO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NA POPULAÇÃO ACTIVA:
(Fonte EUROSTAT, publicado no Correio da Manhã)

Suécia .. 33,3%
Dinamarca ..30,4%
Bélgica .. 28,8%
Reino Unido ..27,4%
Finlândia ..26,4%
Holanda .. 25,9%
França .. 24,6%
Alemanha .. 24%
Hungria .. 22%
Eslováquia ..21,4%
Áustria .. 20,9%
Grécia .. 20,6%
Irlanda .. 20,6%
Polónia .. 19,8%
Itália .. 19,2%
República Checa..19,2%
PORTUGAL .. 17,9%
Espanha .. 17,2%
Luxemburgo .. 16%

E a propósito de Luxemburgo, se Portugal é o país com mais baixa produtividade na Europa e o Luxemburgo o de mais alta produtividade, apesar de um quinto dos seus habitantes serem portugueses, das duas uma, ou é dos ares lá no centro da Europa, ou ao passar a fronteira tomam umas coisas que cá ainda não descobriram, ou os outros 4/5 trabalham a sério para compensar, ou não é um problema genético do pessoal cá do burgo, ou... porque será? Somos todos totós?

Seja como for, a mensagem está a passar (no que respeita à opinião pública): a culpa de todos os problemas do país (e arredores) é dos funcionários públicos. Metem-se todos no mesmo saco (bons e maus) e espera-se que o Scolari convença o pessoal a pôr umas bandeiras na janela, e tá tudo bem.

Quanto aos tais 15 da EPUL e outras do género, não se pode fazer nada, as indemnizações são muito altas, patati patata, tem que ficar assim. Para cada um destes cavalheiros ficar no seu cargo (decerto essencial à sobrevivência do país), lá teremos que tratar da saúde a umas dúzias dos que ganham ordenados baixos. É mais fácil e esses não se sabem mexer nem blindar os contratos. Além disso, se calhar estão demasiado ocupados a trabalhar...!

O parasita

domingo, setembro 24, 2006

As regras... e as pessoas

Quando entrei para um organismo da administração pública, há quase 20 anos, uma das primeiras coisas que me explicaram foi o regulamento, ou seja as regras do jogo: os horários, o que se pode ou não fazer, como se justificam ausências, etc.

Na altura pensei logo em ter cuidado para não ser apanhado a infringir nada. Com o tempo, apercebi-me que algumas coisas não eram levadas de forma absolutamente rigorosa por todos os colegas, mas não vi grandes abusos.

Estranhei quando reparei que, de vez em quando, o meu director, se via alguém mal disposto, chegava junto da pessoa em causa e lhe dizia algo do estilo - "você hoje não está bem. Vá para casa e volte amanhã, se estiver melhor".

Quando precisava de um esforço suplementar de alguém, que implicasse sair para além das horas normais de serviço, o mesmo director vinha ter com as pessoas em causa e solicitava esse esforço, obtendo normalmente resposta positiva.

Com o tempo, fui percebendo que o mesmo director, se via alguém a "fazer ronha" caía-lhe em cima de forma implacável.

Lembrei-me disto a propósito de uma nota que, por indicação da administração do organismo onde trabalho, foi enviada a todos os colaboradores. Basicamente, a nota destinava-se a esclarecer "todos os colaboradores, que o gozo de “horas a mais”, só se poderá efectivar, quando as mesmas tenham sido feitas de facto por motivos de serviço, e não por gestão do tempo por interesse meramente pessoal. Para correcta responsabilização do serviço, o pedido de gozo de “horas a mais” tem de ter a autorização prévia do superior hierárquico, e não apenas posteriormente como uma normal justificação de falta."

Perante esta nota, enviei imediatamente um pedido de esclarecimento ao Núcleo de Recursos Humanos, dizendo que, "por razões de serviço tenho frequentemente horas a mais e, sempre que necessário e com a autorização do superior hierárquico, falto apresentando posteriormente a justificação. Nunca me ocorreria faltar sem avisar previamente a chefia e ter a sua necessária concordância, visto que é da sua competência decidir se essa falta é possível, mediante as necessidades do serviço (e, sempre que entender nesse sentido, deverá informar o funcionário de que não será possível faltar nessa altura)."

A colega ligou-me dizendo para fazer o que sempre tinha feito.

Eu acho que os regulamentos são para cumprir. Mais, muitas vezes, quando se fecha os olhos em algumas situações insignificantes, há sempre uns xicos espertos que resolvem logo abusar, estragando tudo (a eles e aos colegas). Defendo ainda que as administrações devem agir, principalmente se não confiarem nas chefias intermédias ou acharem que há abusos. No entanto, para mim, os regulamentos não são tudo.

Se um funcionário entrar à hora certa e sair sempre à hora certa, está a cumprir os regulementos. Há muitos assim: quando toca o minuto estão já de cartão na mão para "picar o ponto". Nunca fica um minutinho para o mês seguinte e, se ficar, é utilizado até ao limite, mesmo que não precise. Se precisar de faltar para tratar de algum assunto, há mecanismos previstos na lei. No entanto, se houver uma necessidade imprevista e já não houver cobertura legal, com que lata é que pode pedir algum favor ao chefe? Quem não está na disposição de dar nada, também não tem moral, na minha opinião, para pedir nada.

A mesma situação pode ser vista de um outro ângulo: o regulamento diz que só se pode fazer horas a mais por interesse do serviço. Está certo. No entanto, há quem sempre tenha muito trabalho que fica por fazer ao sair para casa e quem, por especificidades da sua função nunca tenha a possibilidade de fazer horas de serviço a mais para posteriormente poder utilizar em caso de necessidade pessoal. Azar o seu: não pode nunca tirar uma tarde por conta de horas a mais. Se, por acaso houver uma necessidade especial de acabar algum trabalho com esforço suplementar, poder-se-á admitir que a mesma administração venha pedir a estas pessoas que façam o favor de trabalhar algumas horas a mais? Haverá também moral para isso? Se não se está na disposição de dar nada, haverá também aqui moral para pedir?

A verdade é que esta questão se calhar não se coloca na prática: na minha experiência profissional, sempre que se fazem horas a mais no meu serviço, a questão é tratada ao nível local e por espírito de camaradagem; é para ajudar colegas que estão em dificuldades e a administração provavelmente nem sequer fica a saber que isto se passou.

É claro que sempre houve a situação dos que fazem horas extraordinárias pagas, (com produtividades às vezes miseráveis nos horários normais) e os outros que fazem inúmeras horas não pagas cujo esforço nunca será reconhecido. É e será sempre assim mas não é isso que está aqui em causa.

Na minha humilde opinião, independentemente da situação em que nos encontremos, simples colaborador ou gestor, deveremos sempre estar disponíveis para dar algo, antes de pensarmos em pedir. Mais do que cumprir excrupulosamente as regras, tata-se de lidar com pessoas, que se supõe responsáveis. Se há abusos, que se trate dessas situações.

Isto ganha uma outra dimensão quando, nos mesmos organismos, existem situações de pessoas que fazem os horários que querem, que vão quando vão, semana após semana, mês após mês, ano após ano, (e as administrações sabem), e nada acontece. Onde estão os regulamentos nesses casos?

Já agora, a respeito de horários laborais, lembrei-me desta citação relativa aos direitos dos trabalhadores, retirada da Encíclica Centesimus Annus, escrita pelo papa João Paulo II em 1991 para comemorar os 100 anos da Rerum Novarum de Leão XIII: "é necessário garantir o respeito de horários «humanos» de trabalho e de repouso, bem como o direito de exprimir a sua personalidade no lugar de trabalho, sem serem violadas seja de que modo for a consciência ou a dignidade."

Como seria bom, se assim fosse.

António Neves
As boas instituições ... e os erros

Há uns anos estive envolvido na criação de um projecto educativo que na altura incluía creche, pré-escolar e 1º ciclo do ensino básico. Tudo era novo na escola: o edifício, os professores e restantes funcionários, os alunos. Enquanto responsável máximo da escola, resolvi fazer uma reunião com todos os pais para apresentar formalmente o projecto educativo e agradecer a confiança por terem inscrito as suas crianças numa escola acabada de nascer, sem provas dadas, portanto.

A reunião teve lugar quando já se tinham iniciado as aulas há alguns dias. O salão estava cheio. Os pais ansiosos (e nós também).

Lembro-me que, no caminho para a escola me informaram que um familiar próximo tinha sofrido um acidente e que estava no hospital, pelo que já ia nervoso e preocupado. Cheguei e iniciámos a reunião, de acordo com o programa que tínhamos preparado.

Estava eu a discursar há alguns minutos, salientando aquilo que nos pareciam ser os méritos do nosso projecto, quando subitamente fui interrompido por um casal. Eram pais de uma menina.
Como acontece em muitas escolas, no fim do dia, algumas crianças eram levadas a casa pela carrinha da escola; outras eram recolhidas na escola por um familiar. Na véspera, devido a um erro que não interessa aqui especificar, durante algum tempo não se soube do paradeiro da menina. Se bem me lembro, não se achava na escola e não se conseguia saber se teria seguido na carrinha.

Imagine-se a situação. Os pais estavam bastantes zangados, principalmente a mãe que teve um discurso bastante violento. A situação, já de si grave do desconhecimento do paradeiro da criança, tinha tomado uma dimensão ainda maior porque, perante o problema, alguns colaboradores não tinham sabido lidar com a questão, alijando responsabilidades para cima de outros, o que só tinha aumentado a insegurança dos pais e contribuído para que o problema aumentasse de dimensão.

Não tenho presente se teria sido avisado previamente do problema ou não, mas lembro-me que, com todos os pais olhando para mim, tive enfrentar a situação no momento. Embora não fosse culpado pela situação, era o responsável, pelo que assumi o erro e prometi que tomaríamos todas as medidas para que semelhantes situações nunca mais voltassem a ocorrer. Lembrei que eu assumia o mesmo risco que todos ao colocar também um dos meus filhos na escola e prometi aos pais da menina que não se iriam arrepender de ter confiado em nós colocando a sua filha ao nosso cuidado.

A reunião continuou num ambiente muito mais pesado do que eu gostaria, como é óbvio.

Logo que possível, tive oportunidade de falar com os colaboradores em causa, salientando a necessidade de perante situações de erro, se deverem enfrentar os problemas com calma, e nunca, em circunstância alguma, se devem despejar culpas para cima de colegas , mesmo que estes sejam responsáveis pela situação. O cliente não precisa de saber quem é culpado, precisa do problema resolvido da melhor forma e sem que lhe demos razão para deixar de confiar em nós. É óbvio que se tomaram imediatamente medidas destinadas a impedir que situações do género se voltassem a repetir.

Meses mais tarde, num dos eventos em que os pais são convidados a estar com os seus filhos na escola (provavelmente num Dia do Pai) lembro-me do pai da menina ter vindo ter comigo, para me dizer que não se esquecia do que eu lhe tinha dito e que não estavam arrependidos de ter mantido a criança na escola.

Pouco tempo depois, na altura em que estava na moda a "paixão da educação", tive o prazer de receber nesta escola com apenas dois ou três anos de existência uma delegação do governo liderada pelo Primeiro Ministro, que, no início de um ano lectivo, entendeu destacá-la publicamente honrando-nos com a sua presença.

A escola continuava a não ser perfeita, continuavam a cometer-se erros, mas a atitude com que sempre foram enfrentados fez dela uma boa escola, onde os mesmo erros raramente se repetem e se pode confiar que, se existirem problemas, são enfrentados e alguém dá a cara por eles.

As boas instituições não são as que não cometem erros; são as que os enfrentam e aprendem com eles, para não os repetir.

António Neves
As instituições ... e as pessoas

Estava a fazer umas arrumações em casa quando encontrei a cópia de uma carta que, enquanto administrador de uma IPSS que não identificarei, enviei aos colaboradores da instituição, por ocasião do 9º aniversário da sua existência. Retirando algumas expressões expecíficas do contexto social da sua acção, parece-me que o seu conteúdo se mantém actual e poderia adequar-se a qualquer tipo de instituição, pública ou privada.

Reproduzo aqui grande parte da mensagem enviada:

"Para o exterior, a face visível de qualquer instituição são as pessoas que nela trabalham. Mais do que as instalações, o esforço financeiro ou o numero de pessoas abrangidas pela sua acção, é a qualidade do serviço prestado que nos faz ter boa ou má impressão de qualquer instituição pública ou privada, com ou sem fins lucrativos. Ao julgar o serviço estamos a julgar a instituição. O mesmo se passa com a (...), aqui com uma razão de ser ainda maior: uma instituição que nasce para servir tem de ter na qualidade de serviço o seu maior motivo de orgulho. Esta tem sido uma aposta nossa desde que iniciámos os serviços em 1988. A boa imagem de que disfruta a (...) por todo o concelho e já fora dele é a prova de que estamos no bom caminho. Devêmo-la, em grande parte, aos bons profissionais a quem confiamos os nossos utentes. Sabemos que, por vezes, as condições de trabalho e dificuldades conjunturais de substituição de funcionários tÊm criado dificuldades adicionais à já de si difícil missão que vêm cumprindo, mas confiamos qua a competência profissional e a consciência da dimensão humana do serviço prestado continuarão a ser apanágio de todos.

Embora satisfeitos por desempenhar um papel importante na melhoria da qualidade de vida no nosso concelho, inquieta-nos o muito que há para fazer, as áreas ondo o nosso esforço é insuficiente, ou aquelas em que ainda não pudemos investir.

Obrigado pelo que já conseguimos.

Perante os novos desafios que se nos deparam diariamente, renovamos o convite que nos chega como eco do sofrimento de tantos, para que continueis transformando o trabalho em serviço, diminuindo desperdícios, optimizando recursos, rentabilizando esforços, de modo que, com maior propriedade, possamos sentir todos nossa a obra da (...)."

António Neves

sábado, setembro 23, 2006

A Doutrina Social da Igreja

Celebraram-se recentemente (em 14 de Setembro) 25 anos sobre a publicação da Encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, a qual marca uma mudança clara na Doutrina Social da Igreja (pela primeira vez um papa admite que a confrontação de classes possa ser necessária).

A Laborem Exercens deveria ter sido publicada a 15 de Maio de 1981 para comemorar o 90 aniversário da Rerum Novarum, mas o atentado que sofreu João Paulo II levou a que só pudesse rever o texto após sair do Hospital, pelo que o documento só surgiu a 14 de Setembro.

De todos os (muitos) documentos publicados pela Igreja sobre a Doutrina Social da Igreja, este será, talvez, um dos que mais priveligiam as questões relacionadas com o trabalho, visto dedicar-se especificamente a esse tema.

A passagem desta efeméride fez-me repensar de novo uma questão que tenho alguma dificuldade em compreender: o desconhecimento que a sociedade em geral e os cristãos em particular têm sobre a Doutrina Social da Igreja (DSI). De facto, se as posições oficiais da Igreja sobre o aborto, a reprodução medicamente assistida, ou sobre a contracepção são, de alguma forma globalmente conhecidas (ou, pelo menos assim parece), é raro encontrar quem, fora da hierarquia da Igreja, conheça, mesmo que de forma mais superficial, a DSI.

E, no entanto, não se trata de um tema novo, ou sobre o qual rareie documentação. Muito pelo contrário.

Como disse João Paulo II, "A doutrina social da Igreja tem, efectivamente, a sua fonte na Sagrada Escritura, a começar pelo Livro do Génesis, e, em particular, no Evangelho e nos escritos dos tempos apostólicos. A atenção aos problemas sociais faz parte, desde o início, do ensino da Igreja, da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Este património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontífices sobre a moderna «questão social», a partir da Encíclica Rerum Novarum" (Laborem Exercens, n.3).

Na verdade, esta área da doutrina da Igreja é uma questão essencialmente evangélica; entra na dimensão do amor ao próximo. Desde sempre estas questões estiveram na linha da frente das preocupações de muitos cristãos, concretizando-se em diversas circunstâncias, e no decurso da História, em acções concretas. Lembro a criação de inúmeras estruturas de carácter social, como os Centros Sociais, e inúmeras IPSS. Entre estas, saliento as Misericórdias, de tradição tipicamente portuguesa, que hoje são cerca de 400 (entre as quais, a bem do rigor, se não deve incluir a mais conhecida, pois a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, não é uma IPSS, mas uma instituição pública tutelada pelo Ministério do Trabalho e da Soldariedade, não fazendo, portanto, parte da União das Misericórdias Portuguesas).

Tendo em conta que a DSI é um património elaborado segundo as necessidades das diversas épocas (cf. Laborem Exercens, n.3), considera-se que o primeiro grande documento de carácter doutrinário sobre a DSI é a Encíclica Rerum Novarum, datada de 15 de Maio de 1891 e que teve como autor o papa Leão XIII.

A Rerum Novarum foi de tal modo marcante para a Igreja do último século que, periodicamente, esteve na origem de muitos documentos papais, publicados em sua comemoração, sendo que o nome de alguns é apenas a referência à própria efeméride:

Assim, vejamos:

* No quadragésimo ano da sua publicação: Encíclica Quadragesimo Anno - 15 de Maio de 1931 - de Pio XI;
* No quinquagésimo ano a mensagem pela rádio La Sollenità della Pentecoste - 1 de Junho de 1941 - Pio XII;
* No septuagésimo ano: Encíclica Mater et Magistra - 15 de Maio de 1961 - João XXIII;
* No octogésimo ano:Carta Apostólica Octogesima Adveniens - 14 de Maio de 1971 - Paulo VI;
* No nonagésimo ano: a, já referida, Encíclica Laborem Exercens - 14 de Setembro de 1981 - João Paulo II;
* No centésimo ano: a Encíclica Centesimus Annus - 1 de Maio de 1991 - João Paulo II;

Há muitos outros documentos relevantes para a DSI publicados no século XX, do qual me parece merecer referência especial a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Concílio Vaticano II), de 7 de Dezembro de 1965.

A criação de vasta documentação sobre este tema justifica-se claramente, pois "A Igreja considera seu dever pronunciar-se a respeito do trabalho, do ponto de vista do seu valor humano e da ordem moral em que ele está abrangido" (Laborem Exercens, n.24)

As transformações económicas e políticas do Séc. XIX resultantes da industrialização foram acompanhadas por graves questões sociais totalmente diferentes das que se conheciam da sociedade pré-industrial. Estas questões estiveram na origem de dois tipos de reflexão de estilo diferente: uma, de carácter ideológico, rapidamente se afirmou por suportar um sistema de pensamento de cariz nitidamente político: o materialismo dialéctico, base filosófica do marxismo; outra, de carácter diverso, assente no humanismo cristão, a DSI.

Assim, enquanto a experiência vivida por Marx, em Paris e principalmente junto da comunidade operária em Londres se não pode dissociar da publicação, em 1848,do Manifesto do Partido Comunista, também é impossível não perceber que, na origem da Rerum Novarum está uma profunda reflexão sobre a nova realidade social onde o movimento operário era já uma realidade visível por parte de Leão XIII (na Europa, mas particularmente na Itália recentemente unificada) e, também, uma reacção e condenação do Socialismo (como então era chamado), contrapondo-lhe a defesa dos trabalhadores de uma forma diferente. Aliás, a Igreja nunca deixou de estar atenta à realidade social/económica/política emergente: por exemplo, no mesmo ano em que Marx fundava a primeira Internacional (1864), o Bispo de Mainz publicava um livro intitulado A Questão Operária e o Cristianismo.

A Rerum Novarum, embora hoje muito ultrapassada em diversos aspectos, foi uma verdadeira "pedrada no charco", um marco histórico, que não passou despercebido, gerando reacções, por vezes violentas. Em Portugal, o primeiro comentário público terá sido a obra A Igreja e a questão social, de Afonso Costa, publicada em 1895, em que este critica duramente a encílica, como seria de esperar.

Contrariamente ao marxismo, a DSI não é uma ideologia ou sistema de pensamento que suporte qualquer tipo de projecto político, mas antes "a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial" (Sollicitudo Rei Socialis, n. 41), ou, dito de outra forma, a "aplicação da Palavra de Deus à vida dos homens e da sociedade, assim como às realidades terrenas que com elas se relacionam, oferecendo «princípios de reflexão», «critérios para julgar» e «directrizes de acção» (idem, n.8).

Como disse João XXIII na Mater et Magistra, a pedagogia adequada da DSI é "Ver, Julgar e Agir", à luz do Evangelho.

Basicamente, pode caracterizar-se por alguns princípios fundamentais que resumo:

1 - A Dignidade da Pessoa Humana

"Cada um dos seres humanos é e deve ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social" (Mater et Magistra, n. 219). Daqui decorre o que, por vezes é conhecido pelo princípio da universalidade, pois o ser humano concretiza-se na história, num espaço e tempo.

2 - O Bem Comum

"o Bem Comum compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem o desenvolvimento integral da personalidade" (idem, n. 65);

3 - A Solidariedade

"O dever de solidariedade é o mesmo, tanto para as pessoas, como para os povos" (Populorum Progressio, n. 48);

4 - A Subsidiariedade

Tem a ver com a responsabilização. Aquilo que alguma pessoa ou instituição pode fazer, não deve ser delegado noutra pessoa ou instância superior (cf. Quadragesimo Anno, 79-80);

Relativamente a esta assunto, tão desconhecido, lembro que, no final de 2004 foi apresentado o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, redigido pelo Pontifício Conselho «Justiça e Paz», por vontade do Santo Padre João Paulo II.

Além das imensas pessoas e instituições que são instrumentos concretos da DSI no terreno, existem diversas organizações que se dedicam à sua divulgação. Na Diocese de Lisboa, tem talvez maior relevância o Centro de Divulgação da Doutrina Social da Igreja (CEDSI) que realiza regularmente iniciativas de divulgação da DSI, nomedamente na Vigararia da Amadora.

Em Novembro de 2004, mais-ou-menos na altura em que foi apresentado o Compêndio, fiz uma pequena pesquisa sobre o assunto na Internet, a propósito de uma conferência que proferi sobre este assunto, precisamente organizada pelo CEDSI. Fiquei surpreso por constar que eram ainda raros os sites associados à Igreja que davam notícia do documento, mas, curiosamente, o mesmo era referido no "Portal do Ateísmo" (www.ateus.net/ ), com uma informação simples e objectiva, explicando o objectivo da publicação.

É fundamental que os cristãos, independentemente dos contextos sociais/culturais/laborais em que se inserem, conheçam a DSI, pois o seu âmbito de aplicação abrange grande parte das realidades com que se deparam e dos problemas que se lhes colocam no dia-a-dia.

Isto tem um significado particular na realidade laboral, porque, "o homem, ao fazer o trabalho, deve imitar Deus, seu Criador, porque ele somente traz em si este singular elemento de semelhança com o Senhor" (Laborem Exercens, n.25).

António Neves

A Parábola dos Talentos

A Parábola dos Talentos, atribuída a Jesus Cristo (Mateus, cap. 25, vv. 14 a 30) retrata a situação de um homem que, ao ausentar-se para longe, chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens. Ao primeiro deu cinco talentos (Talento - do lat. talentum -, moeda romana usada na época), ao segundo, dois e ao terceiro, um. Os dois primeiros negociaram os talentos recebidos e devolveram, respectivamente, dez e quatro talentos. O terceiro devolveu apenas o que havia recebido. Os que multiplicaram seus talentos ganharam novas responsabilidades. Mas o que o não fez render o que lhe tinha sido confiado ficou sem o pouco que tinha: "Porque ao que tem será dado e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado".

Esta é uma das leituras cuja mensagem mais me toca. Ela pode ser interpretada à luz de diversos prismas, mas sempre com um sentido que me interpela.

É, por exemplo, daqui que advém a minha convicção que devemos colocar as nossas capacidades ao serviço da comunidade, de acordo com as nossas disponibilidades: seja no mundo do trabalho, ou, não menos importante, assumindo diversas responsabilidades no serviço da nossa comunidade na fé, pois o papel dos leigos é insubstituível. Assim, as funções que desempenhamos são apenas uma forma de colocar os talentos (que não são nossos, mas nos foram confiados) ao serviço da comunidade, cada qual da forma que pode. Basicamente, acho que não temos mérito nas qualidades que temos, pois elas são-nos dadas pelo Criador; teremos algum mérito na forma como as usamos, pois isso já depende de nós.

No meu entender, isto aplica-se em todos os sectores da nossa vida, sabendo que, a todos são atribuídas responsabilidades em diferentes medidas: a uns cinco, a outros, dois e a outros um. É indiscutível que, a quem recebeu mais, mais deve ser exigido; assim, o nível de exigência está indissoluvelmente ligado aos dons que cada um, em determinada circunstância da vida, tem que gerir (leia-se, colocar ao serviço).

Nas relações laborais isto também se aplica de forma clara. Empregados (colaboradores, para ser mais abrangente), dirigentes, patrões, todos têm que administrar os dons recebidos, dos quais haverão de dar contas um dia.

Neste contexto é fácil verificar que entramos num domínio caracterizado por interesses antagónicos e relações de poder.

Neste domínio de relações, por vezes difíceis, é justo que cada um lute pelos seus interesses, mas também que não fuja às suas responsabilidades.

Uma forma simples de ver as coisas dir-nos-ia que, nos estados de direito, isto se consubstancia em direitos e deveres, legalmente estabelecidos. Mas é pacífico que a evolução destes direitos e deveres resulta de um proceso dinâmico em que todos são actores e nenhuma lei é final e definitiva.

A História mostrou-nos vários respostas. Uma, bem conhecida, de cariz ideológico, assenta na inconciliabilidade de interesses e na inevitabilidade da luta de classes. Sabe-se onde conduziu.

Outra, assente na doutrina social da Igreja, pode ser vista como uma aplicação prática desta parábola: a cada um são atribuídos dons, leia-se, responsabilidades, que deverá colocar ao serviço do bem comum, no respeito pelo próximo. Isto vai para além da matriz rígida que caracteriza qualquer diploma legal.

Durante alguns anos exerci funções de administração numa organização com mais de 100 colaboradores. Simultaneamente, continuei a minha carreira de quadro superior num organismo da Administração Pública. Tenho, portanto, uma ideia concreta, baseada na minha experiência de vida, das responsabilidades que cabem enquanto simples colaborador e enquanto gestor de uma organização. Nenhuma destas funções é mais digna, apenas os dons e as responsabilidades são diferentes.

Se cada funcionário tivesse a oportunidade de, durante algum tempo, se colocar na posição de gestor, e o inverso também fosse possível, estou certo de que talvez uns e outros compreendessem melhor as responsabilidades do outro e cumprissem melhor as suas.

António Neves

quinta-feira, junho 29, 2006

Tácticas para não fazer nada, na função pública - II

PARASITA: então, por aqui de novo?

VISITA: É. Fiquei com a sensação de que não me tinhas dito tudo.

PARASITA: Pois. Há muitas maneiras matar pulgas, ou seja, neste caso, há muitas formas de um tipo se safar sem ter que bulir muito.

VISITA: Da maneira que falas até parece que esse é o grande objectivo do pessoal: não fazer nada.

PARASITA: Isso é a imagem que passa, mas, na verdade, até é injusto. Há muito pessoal que trabalha, que veste a camisola, como costumam dizer. Mas também há quem faça tudo para se ir safando e, muitas vezes, com sucesso.

Uma das formas mas comuns é, pura e simplesmente, dar a ideia de que o que fazemos é de uma complexidade elevadíssima, uma coisa do outro mundo. Se as chefias não dominarem o processo, como muitas vezes acontece, isso pode ser relativamente simples.

VISITA: Mas não se precebe logo que é treta?

PARASITA: As tarefas que hoje existem são muito variadas. Por vezes têm alguma tecnicidade e são realizadas apenas por uma ou duas pessoas na instituição. Os detalhes são apenas conhecidos de quem trata directamente do assunto.

Se conseguires vender a ideia de que determinada tarefa é uma coisa complicadíssima, consegues dessa forma justificar uma produtividade miserável, sob uma capa de trabalho dedicado, e ainda por cima, afirmas-te como imprescindível.

VISITA: Quer dizer, o pessoal faz o que quer. Então não há procedimentos que descrevam essas tarefas?

PARASITA: Vão começando a haver, aqui e ali, com esta história dos manuais da qualidade, das certificações, mas ainda não é uma prática generalizada.

Por outro lado, quanto mais complexo for o assunto, menos vontade tem o chefe de se meter; ele quer é o trabalho feito. Os detalhes da coisa são, muitas vezes, incompreensíveis e um ou dois termos técnicos bem metidos na conversa tiram a vontade de tentar perceber o que quer que seja. Por um lado, para quem domina o processo, é conveniente manter a aura de mistério e complexidade; por outro, para o superior, não há muita motivação para tentar perceber melhor do que se trata. Até porque se percebesse que, afinal aquilo não é assim tão complicado ficava com um problema de gestão em mãos. Teria que se confrontar a pessoa em causa e isso não faz parte desta cultura da pancadinhas nas costas e em que, quanto menos chatices, melhor.

VISITA: Estou a ver.

PARASITA: Há uma outra variante: enquanto uns vendem a ideia de que fazem coisas tremendamente complexas e que só uns iluminados dominam (apostam na vertente qualidade), alguns fazem passar a ideia de que o volume de trabalho que têm em mãos é desmesuradamente elevado, pelo que nem pensar em dar-lhes mais trabalho (é a opção baseada na quantidade).

VISITA: Mas nesse caso é muito mais fácil de desmascarar. Basta contar o trabalho feito para perceber que é pouco.

PARASITA: Não é assim tão simples. É necessário dominar um pouco o processo para perceber se determinada quantidade de trabalho é muito ou pouco. E, como já disso, isso nem sempre acontece. Noutros casos até seria fácil perceber de que se trata de algo pouco consistente, mas, mais uma vez, como obrigar certas pessoas a fazer mais? Isso levaria a conflitos e aborrecimentos e o pessoal acha que não ganha para isso. Além disso, estou certo de que, em muitos deses casos, a pessoa em causa teria o cuidado de degradar o trabalho o suficiente para fazer passar a mensagem de que não é possível fazer tanto com boa qualidade, pelo que é preferível ir fazendo umas coisitas, mas mais-ou-menos bem feitas.

Se fosses o responsável, o chefe, o que peferias: muito trabalho mal feito ou menos, mas que se aproveite? É essa a ideia que está por trás disto: fazer crer que não é possível fazer as coisas bem feitas se obrigarem a fazer mais.


VISITA: Estou siderado. Parece que a função pública é uma escola onde se aprende a balda , assim como dizem que as prisões são escolas de crime. Não admira que a nossa produtividade seja a mais baixa da Europa.

PARASITA: Sabes, apesar do que disse, isto não é a regra. A produtividade da função pública é como aquela história dos frangos: Uma família como dois frangos por semana; a outra não como nenhum. Qual é a média? Um frango por família. Aqui é o mesmo.

Uns não fazem grande coisa, outros trabalham razoavelmente e há também os que fazem muito mais do que seria normal. A média acaba por ser o resultado disto tudo.

VISITA: Lá isso é verdade.

PARASITA: Há também os que não fazem nada porque não lhe dão que fazer: as chamadas prateleiras douradas.

VISITA: Porquê?

PARASITA: Olha, por muitas razões: porque caíram em desgraça, porque não são da côr, porque são incómodos e não se consegue ou é inconveniente correr com eles, etc, etc.

Além disso, com os ciclos eleitorais há clientelas a satisfazer, independentemente das suas competências. Há sempre gente a colocar e muitos lugares apetecíveis. As listas de pessoas e de colocações têm as suas hierarquias, basta jogar com estas listas de forma a não deixar gente com mais peso por satisfazer. Quando as coisas mudarem, vão para outro lado. Entretanto não produziram nada de jeito, mas desde que não destruam muito...

VISITA: Por muito que tente não consigo perceber porque é que não se tomam medidas. Fala-se tanto em reformas da administração, em melhor gestão dos recursos, em optimização, recionalização...

PARASITA: Pois, mas resolver isto teria custos que não interessam a muita gente.

VISITA: Bom, por hoje chega. Pode ser que a reforma da Administração que estão a fazer, o tal PRACE, ajude a melhorar isto.

PARASITA: É, e já agora vai fazendo a cartinha para o Pai Natal.

quinta-feira, junho 15, 2006

Tácticas para não fazer nada, na função pública

PARASITA: entra, entra.

VISITA: olha lá, não te quero criar problemas, nem interromper o teu trabalho.

PARASITA: não há problema. Fechamos a porta e, para todos os efeitos, estamos numa reunião; és um cliente.
Ninguém nos vai chatear e se baterem à porta, eu peço para não interromperem a reunião e depois invento qualquer coisa.

VISITA: ok, tu é que sabes. E então, tens muito trabalho?

PARASITA: vou-me distraindo com alguma coisa. Toda a gente diz que tem muito trabalho, mas não é bem assim. Sabes, na função pública temos que saber viver com o sistema. Há várias maneiras de ir vivendo sem fazer nenhum.

VISITA: como?

PARASITA: eu explico. Há várias tácticas:Uma das mais eficazes é fazer sempre má cara e responder torto quando nos pedem qualquer coisa.
Resulta sempre.

VISITA: mas como é que isso funciona? As chefias deixam?

PARASITA: sabes, a lógica é esta: o que interessa é que as coisas se façam com o mínimo de chatice.
Se alguém pede alguma coisa, seja o chefe ou outro colega e respondermos constantemente de forma agressiva, fazendo uma cara de mau, resmungando, etc, passado pouco tempo deixam de nos pedir nada.
Passam a pedir a outro, porque há sempre algum(a) palerma que diz sempre que sim. É por isso que o sistema funciona: na função pública ainda há muita gente que não sabe dizer que não e vai levando isto às costas.

VISITA: mas isso não é justo. Assim, uns não fazem nada e outros ficam sobrecarregados com trabalho.

PARASITA: vejo que percebeste como isto funciona. É isso mesmo.

VISITA: e como é que as deixam que isso funcione assim. Os chefes não sabem?

PARASITA: os chefes directos normalmente devem saber, mas, tirando algumas excepções, como te disse, o importante é que o trabalho apareça feito. As pessoas acham que não ganham o suficiente para se chatear. Se as coisas acabam por ser feitas, qual é o problema? Quem é que está para aturar um tipo que reage sempre mal a qualquer solicitação?

Lembro-me daquele instituto em que o director novo, quando chegou, só pedia trabalho a uma colaboradora, mesmo quando o trabalho era de área de outra. Esta última, já no topo de carreira, é conhecida por responder sempre torto a qualquer solicitação. A outra, simpática e sempre disponível, ia-lhe dizendo quando o trabalho pertencia à área da colega, mas continuava a fazê-lo, até que se cansou e teve uma conversa com o chefe. Disse-lhe que assim não podia ser. O chefe respondeu: sabe, ela faz sempre tão má cara quando lhe peço alguma coisa!
Quando a funcionária lhe disse que não era justo, porque a colega ganhava o dobro e não fazia nada e ela estava sempre sobrecarregada, sabes qual a resposta do chefe? "Não pode pensar assim e, além disso confio muito mais no seu trabalho, é por isso que só lhe peço a si".

VISITA: e no que é que isso deu?

PARASITA: a palerma que fazia tudo fartou-se e pediu transferência. Aí o chefe acordou e começou a pedir uma ou duas coisitas à outra muito a medo, mas logo trataram de ver se não concediam a tansferência porque isso dava conta do esquema. Já viste: se ela se fosse embora como é que se fazia o trabalho? Teriam que enfrentar a fera? Ficou tudo na mesma.

VISITA: eu tinha a impressão de que havia algumas situações desse género, mas nunca pensei que fosse mesmo assim.

PARASITA: isto ainda tem outra implicação: os tipos que fazem tudo acabam, muitas vezes, por ter que andar a trabalhar fora de horas e, mesmo assim, ter trabalho atrasado, enquanto os espertos nunca estão em falta. Depois, se for preciso pedir contas de algo que não foi feito a horas, ainda vão chatear os que estão sobrecarregados, porque foram eles que não cumpriram.

VISITA: acho que não conseguia trabalhar num sítio assim.

PARASITA: Isto de responder torto e resmungar tem uma outra variante, usada também por pessoas que até trabalham alguma coisa.

VISITA: ai é?

PARASITA: sim. Algumas pessoas tratam os colegas frequentemente como atrasados mentais. É uma atitude muito usada, principalmente por informáticos, embora nem todos sejam assim. Quando alguém coloca algumas dúvidas, ou alguma questão, ou faz algum erro, faz-se sentir a pessoa em causa uma idiota. Da próxima vez que tiver alguma questão ou dúvida, pensa duas vezes antes de recorrer ao mesmo colega pedindo ajuda?

VISITA: mas, olha lá, não é suposto os informáticos darem apoio e ajudarem a resolver problemas informáticos?

PARASITA: É, mas isto já é uma questão clássica. Se calhar é um problema de comunicação. É verdade que, às vezes, há pessoas que, ao lidar com a informática, parece que se lhes
desliga algum botão e perdem capacidade de raciocínio. Subitamente deixam de funcionar normalmente.
Se calhar é algo intrinsecamente associado ao uso de computadores, ou um trauma qualquer.

VISITA: então como é que se resolvem os problemas?

PARASITA: depende da urgência da questão e de quem está disponível. Se não houver mais ninguém para resolver, tem que se engolir o orgulho e lá ir pedir ajuda ao génio que lida tu-cá-tu-lá com estas máquinas infernais. De qualquer forma, tudo se torna mais fácil se houver mais alguém a quem recorrer. Normalmente, haverá sempre um palerma que não responde torto e que vai levando com tudo em cima. Nem todos tratam os colegas sistematicamente como imbecis. Há informáticos que, mesmo não entendendo as razões que estão por trás de alguns comportamentos em frente ao écran, são compreensivos e têm paciência para os colegas. Provavelmente entendem que todos, em alguma circunstância, precisam de ajuda. Ou então são simplesmente otários.

VISITA: mas esses não se fartam?

PARASITA: às vezes, é difícil, mas quais são as alternativas. Imagina: um colega pede ajuda e se tu não o ajudares, ele não consegue resolver o problema. O que é fazer? O colega ali à tua frente, desesperado ...

Lembro-me daquele caso, em que havia vários funcionários no departamento de informática e havia já muitos colegas que só recorriam a um deles, mesmo que o assunto fosse da responsabilidade de outros.
Quando ele dizia que a questão deveria ser colocada a fulano, vinham logo apelar ao seu bom coração.
Não estavam para ser maltratados nem levar respostas desagradáveis do A dou do B. Alguns diziam mesmo que se recusavem a pedir alguma coisa a qualquer um dos outros, mesmo sabendo que o assunto era da responsabilidade de um outro. Ainda hoje parece que é mais-ou-menos assim.

VISITA: e como é que ele reagia?

PARASITA: lá ia ajudando. Tornou-se difícil, porque interrompiam constantemente o seu trabalho, mas ele tinha pena dos colegas.

VISITA: começo a perceber melhor como isto funciona.

PARASITA: há outras tácticas que também garantem excelentes resultados. Uma das melhores é simplesmente não saber fazer o trabalho.

VISITA: como!?

PARASITA: é como te disse. Se não souberes fazer, não te pedem que o faças. É simples e eficaz.

VISITA: mas isso pode ser razão para não trabalhar? Supostamente as pessoas têm funções e devem ter competência para as realizar, não?

PARASITA: não é assim tão simples. Há sempre coisas novas, alterações, evolução, novas tarefas, novos projectos.

VISITA: e não há formação?

PARASITA: isso é outro assunto. Muitas vezes não há formação adequada, mas, quando há, nem todos a vêem com bons olhos. Tás a ver, se receberem formação, terão mais dificuldade em dizer que não sabem. Assim, há muito boa gente que não gosta de receber formação. Enquanto não souberem fazer, estão descansadinhos.

VISITA: isso é incrível.

PARASITA: é ainda pior. Há alguns que, por mais formação que recebam, formal ou não, nunca sabem fazer. Explicas uma vez, duas, três, e continuam a fazer mal, a cometer sistematicamente os mesmo erros. Já estás a ver o resultado. É como te disse há pouco. Se há uns que não sabem e outros que não dão problemas, levam estes com o trabalho.

VISITA: e não há penalizações nem reconhecimento do trabalho ? Os chefes não vêem isso?

PARASITA: o quê? Vê-se que não percebes nada disto. Alguns ainda vão tentando tomar algumas medidas, mas é muito difícil, principalmente quando há prazos para cumprir e às chefias superiores também só interessam os resultados finais. Como é que obrigas alguém a trabalhar, se a pessoa não sabe? E se sabes que sistematicamente faz mal o que se lhe pede? Imagina que tens que apresentar um trabalho qualquer: pedes a quem o faz bem e sem levantar ondas ou a quem só faz asneira ou cria complicação atrás de complicação?

Garanto-te: é muito útil não saber fazer, ser incompetente. Se alguém diz que não sabe e tu estás a precisar do trabalho com urgência, só tens uma solução: garantir que alguém o faz sem levantar problemas. A questão é sempre a mesma: o que interessa é o trabalho feito e o mínimo de chatice. Quanto a penalizações ou reconhecimentos, vê-se mesmo que não percebes: ainda gozam com os que trabalham: são as famosas medalhas de cortiça.

VISITA: mas isso é muito injusto. Só penaliza os que são interessados, que gostam de aprender, que se preocupam.

PARASITA: é assim que as coisas funcionam e não vale a pena pensar que mudam facilmente.

VISITA: e as avaliações? As pessoas não são avaliadas pelo seu desempenho?

PARASITA: do que tu te foste lembrar. Há avaliações, mas isso é um tema muito complexo e já não há tempo hoje. Teremos que falar disso noutra altura. Está quase na hora de me ir embora e está-me a apetecer um cafezinho. Vens?

VISITA: obrigado, mas fica para outra altura. Vou andando. Hoje já me deixaste muito abananado.

PARASITA: então está bem. Levo-te à saída. Adeus.